Você está preparando seu café da manhã, almoço ou jantar enquanto assiste à uma receita no celular. Depois disso, liga a TV, senta-se no sofá e come. Ou então vai para o computador e aproveita a refeição enquanto joga um jogo. Tem gente que ainda pega novamente o celular e fica vendo uns vídeos divertidos enquanto se alimenta, outras que trabalham enquanto comem e por aí vai…
Se você não se identificou com a rotina acima, deve conhecer um amigo, colega ou familiar com o perfil do tipo. Afinal de contas, esse é um hábito bem comum na vida de muitas pessoas.
O problema é que comer na frente de telas atrapalha os sinais cerebrais da fome e da saciedade. Isso acontece porque a atenção ao comer permite que comamos mais devagar, mastigando bem, o que ajuda o nosso corpo a identificar quando já estamos satisfeitos, evitando excessos.
“Outro fator descrito pela ciência é que a falta de atenção nas refeições afeta a formação da memória alimentar, que é importante para a adequada consciência dos alimentos que ingerimos, interferindo em como nosso cérebro processa os sinais de fome, de saciedade e de desejo de comer”, explica a nutricionista Neiva Souza, doutoranda em Neurologia e Neurociências pela UNIFESP e professora de pós-graduação em nutrição.
E isso não é só problema de adulto. Como cada vez mais crianças e adolescentes estão expostas a dispositivos eletrônicos, segundo especialistas ouvidos pelo g1, esse tipo de distração durante as refeições tem também influenciado nas preferências alimentares desses jovens, aumentando seletividade e até a impulsividade, fatores associados à ansiedade e depressão.
Abaixo, entenda como evitar essas distrações e promover uma alimentação mais consciente.
A chave pra tudo isso é que a distração de uma tela reduz a atenção plena durante as nossas refeições, levando a uma alimentação menos consciente e automática.
Isso faz com que a pessoa perca a percepção de saciedade, consumindo mais do que precisa. Além disso, como o tempo da refeição pode se estender, a percepção de sabores e texturas também é reduzida, contribuindo para um consumo maior.
No caso somente do uso de smartphones durante as refeições, um estudo de 2019 mostrou que esse hábito pode aumentar o consumo de calorias em até 15%.
A pesquisa, conduzida na Universidade Federal de Lavras (UFLA) em Minas Gerais, contou com 26 homens e 36 mulheres que participaram de sessões nas quais podiam escolher entre alimentos de diferentes densidades calóricas, como refrigerantes, biscoitos e chocolates, ou opções menos calóricas, como frutas, iogurte natural, torradas e água.
ENTENDA: A densidade calórica de um alimento faz referência à quantidade de calorias em relação ao seu peso ou volume, algo importante para entender a saciedade. Alimentos menos calóricos e volumosos tendem a prolongar a sensação de saciedade com menos calorias, em comparação com alimentos de alta densidade calórica, como o chocolate.
No estudo, em três situações distintas, cada participante comia sob uma condição específica: usando o smartphone, lendo ou sem nenhuma distração.
Os resultados mostraram que, tanto o uso do smartphone quanto a leitura aumentaram a ingestão calórica em até 15% em relação ao consumo sem distração, e ainda incentivaram o consumo de alimentos mais gordurosos, especialmente entre os homens. Mesmo assim, não houve alteração significativa na mastigação, ou seja, outros fatores comportamentais associados à distração podem explicar o aumento na ingestão calórica.
“Tanto o smartphone quanto a leitura são fontes de distração, mas eles podem ter impactos diferentes sobre o consumo alimentar”, diz o professor e coordenador do estudo Luciano José Pereira, do Departamento de Ciências da Saúde (DSA) da UFLA.
Pereira diz que optou por incluir a leitura como uma distração no estudo para servir como um tipo de “controle positivo”, ou seja, uma distração que não envolvesse aparelhos eletrônicos. A ideia era ver como uma atividade mais estática e introspectiva, como a leitura, afetaria a quantidade de alimento consumido, em comparação com o uso do smartphone, que traz estímulos visuais e interativos que podem capturar ainda mais a atenção.
No entanto, os resultados mostraram que ambas as distrações — leitura e smartphone — foram suficientes para desviar o foco da refeição, levando ao aumento da ingestão calórica.
“Ambas as distrações reduzem a atenção plena, limitando a percepção do que é consumido. Apesar de nossa hipótese de que smartphone, por ser mais envolvente, dinâmico e envolver o uso das mãos, resultasse em um maior consumo calórico em comparação com a leitura, esse fato não foi observado”, acrescenta.
Já outro estudo recente, realizado na Universidade de Sussex, no Reino Unido, com 120 mulheres, todas com idades entre 18 e 35 anos, comprovou que a capacidade de perceber os sinais de saciedade está diretamente relacionada à atenção disponível no momento da alimentação.
Para chegar a esse resultado, os pesquisadores ofereceram bebidas com diferentes níveis de saciedade enquanto as mulheres realizavam tarefas que variavam em demanda perceptual, ou seja, em dificuldade ou complexidade da tarefa.
Aquelas que consumiram uma bebida mais rica em calorias e com uma textura mais espessa, enquanto realizavam uma tarefa de baixa “carga perceptual” (baixa atenção necessária), relataram maior saciedade e consumiram menos em um lanche que foi oferecido posteriormente.
No entanto, esses efeitos foram eliminados quando as participantes estavam engajadas em uma tarefa que exigia mais atenção.
“As pesquisas científicas ainda tentam entender se há diferenças significativas entre o tipo de distração e o consumo alimentar, mas já se sabe que envolver-se em uma tarefa que desvia a atenção da comida pode interferir no comportamento alimentar e não apenas aumentar a ingestão de calorias, mas também influenciar nossas escolhas para alimentos menos saudáveis”, ressalta Souza.
Pereira também conduziu dois estudos recentes com crianças para investigar como o uso de distrações, como smartphones e a televisão, durante as refeições pode afetar os hábitos alimentares.
No primeiro estudo, que foi uma revisão sistemática com meta-análise (ou seja, uma avaliação de diversas pesquisas do tipo) foram analisados treze artigos sobre o impacto da televisão como fator de distração em crianças e adolescentes com idades entre 3 e 17 anos.
E embora as crianças estivessem expostas a esses distraidores, ele conta que NÃO foram encontradas diferenças significativas no consumo de alimentos durante as refeições experimentais, independentemente da presença ou ausência da televisão.
No segundo estudo, ele focou em crianças de 10 a 12 anos e investigou o efeito de distrações como smartphones e a leitura. Novamente, ele observou que esses fatores de distração não influenciaram a ingestão calórica das crianças, contrastando com seu estudo realizado em adultos.
Acreditamos que essas distinções são decorrentes da diferença do nível de atenção direcionado aos fatores de distração entre adultos e crianças. Adultos utilizam predominantemente smartphones para acessar notícias, e-mails e aplicativos de redes sociais. Em contrapartida, as crianças utilizam smartphones com maior frequência para jogos eletrônicos e vídeos, o que pode resultar em diferentes níveis de envolvimento e, assim, ter um impacto menor na ingestão calórica.
— Luciano José Pereira, professor do Departamento de Ciências da Saúde (DSA) da Universidade Federal de Lavras (UFLA).
G1